Em tempos de atalhos, onde a obesidade é resolvida pelo Ozempic, o estudo por um prompt que sumariza um livro no ChatGPT, a dor pelos opiodes, as rugas pelo botox, a tristeza pelos antidepressivos e o tedio pelas redes sociais me aparece um trecho de um livro de 1932 que me fez refletir sobre as angustias de sermos humanos. “ Reinvidico tudo isso” disse o selvagem ao Controlador. Será?
Abaixo o trecho, do livro Admirável Mundo Novo.
“Meu jovem querido amigo”, diz Mustafá Mond, “a civilização não precisa de nobreza ou heroísmo. Essas coisas são sintomas de ineficiência política. Numa sociedade bem organizada como a nossa, ninguém tem qualquer oportunidade para ser nobre ou herói. As condições teriam de ser totalmente instáveis para que surgisse uma situação como essa. Onde há guerras, onde há divisão de lealdades, onde há tentações às quais resistir, objetos de amor pelos quais lutar ou os quais defender — lá, obviamente, nobreza e heroísmo fazem algum sentido. Mas aqui não há guerras hoje.
Tomam-se grandes cuidados para impedir que você ame alguém demais. Não existe essa coisa de lealdade dividida; você está tão condicionado que não pode evitar fazer o que deve fazer. E o que você deve fazer é tão prazeroso, tantos são os impulsos naturais aos quais se permite livre manifestação, que na verdade não há quaisquer tentações às quais resistir. E se alguma vez, por algum infeliz acaso, algo desagradável de algum modo acontecesse, bem, sempre temos soma [a droga] para você tirar umas férias dos fatos.
E sempre tem soma para aplacar sua raiva, reconciliá-lo com seus inimigos, fazer com que seja paciente e estoico. No passado você só poderia realizar essas coisas fazendo um grande esforço e após anos de rigoroso treinamento moral. Agora, você engole dois ou três tabletes de meia grama, e pronto. Agora qualquer um pode ser virtuoso. Você pode levar pelo menos metade de sua moralidade num frasco. Cristianismo sem lágrimas — é isso que soma é.”
“Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? ‘Se após cada tempestade vêm tais calmarias, que soprem os ventos até terem despertado a morte? Há uma história que um desses velhos índios costumava nos contar, sobre a Garota de Mát-saki. O jovem que quisesse casar com ela teria de fazer a capina matinal em seu jardim. Parecia fácil; mas havia moscas e mosqui-tos, mágicos. A maioria dos jovens simplesmente não conseguia aguentar as mordidas e picadas. Mas aquele que conseguiu – conseguiu a garota.”
“Encantador! Mas em países civilizados”, disse o Controlador, “você pode ter garotas sem capinar por elas; e não há quaisquer moscas ou mosquitos para picar você. Livramo-nos de todos eles séculos atrás.”
O Selvagem assentiu, franzindo a testa. “Vocês se livraram de-les. Sim, isso é típico de vocês. Livrando-se de tudo o que é desagradável em vez de aprender a suportá-lo. Saber se é mais nobre na mente suportar as pedradas e flechas da fortuna atroz ou tomar armas contra as vagas de aflições e, ao afrontá-las, dar-lhes fim…
Mas vocês não fazem nenhum dos dois. Nem sofrer nem se opor. Vocês apenas aboliram os estilingues e as flechas. É fácil demais… O que vocês precisam”, continuou o Selvagem, “é de algo com lágrimas, para variar… Viver perigosamente não tem sua graça?”
“Muita”, replicou o Controlador. “Homens e mulheres devem ter suas suprarrenais estimuladas de vez em quando… É uma das condições para uma saúde perfeita. É por isso que fizemos com que os tratamentos S.P.V. sejam compulsórios.”
“S.P.V.?”
“‘Substituto da Paixão Violenta. Uma vez por mês inundamos todo o sistema de adrenalina. É o exato equivalente fisiológico do medo e da raiva. Todos os efeitos tônicos de assassinar Desdêmona e ser assassinada por Otelo sem nenhuma das inconveniências.”
“Mas eu gosto de inconveniências.”
“Nós não”, disse o Controlador. “Preferimos fazer as coisas confortavelmente.”
“Mas eu não quero conforto. Eu quero Deus, quero poesia, quero perigo real, quero liberdade. Quero bondade. Quero pecado.”
“Na verdade”, disse o Controlador, “você está reivindicando o direito de ser infeliz.”
“Tudo bem, então”, disse o Selvagem, desafiador. “Estou reivindicando o direito de ser infeliz.”
“Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; o direito de ter sífilis e câncer; o direito de ter muito pouco o que comer; o direito de ser horrível; o direito de viver em constante apreensão quanto ao que vai acontecer amanhã; o direito de pegar tifo; o direito de ser torturado por dores indizíveis de todo tipo.”
Houve um longo silêncio.
“Reivindico tudo isso”, disse o Selvagem afinal.
Mustafá Mond deu de ombros. “Disponha”, disse ele!